7 dias após o anúncio de sua saída dos Beatles, Sir Paul fazia sua estreia solo em 17 de abril de 1970 (data do lançamento na Inglaterra, nos EUA seria lançado três dias depois).
Uma das coisas que chamaram a atenção, fora o conteúdo das composições em si, foi o fato de Paul ter tocado todos os instrumentos do disco, além de ter feito todos os vocais principais. Linda McCartney, com quem havia se casado há pouco tempo, fez alguns poucos e esparsos backing vocais, e esta é toda a participação “externa” com que Paul contou.
Exatamente por este perfil autônomo, o disco acabou soando caseiro demais, e a crítica foi impiedosa. Segundo os detratores, algumas das composições ainda estariam num estágio muito cru e precisariam ter sido melhor arranjadas e produzidas. A curta extensão da maior parte das músicas reforça esta impressão.
Claro que esta aparente simplicidade foi intencional, já que Paul se ressentia do fato de que os últimos discos dos Beatles contariam com um excesso de produção. Paul tinha em mente principalmente a produção de Phil Spector para o álbum Let It Be, considerada pomposa e rebuscada demais (Décadas mais tarde seria lançada a versão Let It Be Naked, para agradar aos fãs que concordam com este perspectiva de Paul).
Se desagradou aos críticos, o mesmo não pode ser dito em relação aos fãs, já que o álbum se tornou um sucesso de público, alcançando o segundo lugar na parada inglesa e o primeiro lugar na norte-americana. O disco conta com uma composição da era pré-Beatles e duas compostas à época da viagem dos Beatles à Índia, em 1968. As demais faixas são composições novas.
CONTEXTO
Em 20 de setembro de 1969, Lennon havia anunciado aos demais Beatles, de maneira privada, que estava saindo do grupo. Os 4 membros concordaram em não tornar público o término da banda, por razões em sua maior parte comerciais, já que Let It Be estava em vias de ser lançado.
Deprimido e confuso com o fim dos Beatles, Paul se isolou com Linda, com quem havia se casado recentemente, em sua fazenda em Campbeltown, na Escócia. Foi uma tentativa de Paul de lidar com os problemas, numa espécie de retiro espiritual. E também de se afastar do mundo das celebridades e viver um pouco da vida de um homem comum, com direito inclusive a uma propensão ao abuso de bebidas alcólicas. Segundo declarações posteriores do próprio Paul, ele estava à beira de um colapso nervoso.
Depois de 2 meses de reclusão, Paul e sua família voltaram à sua casa em Westminster, na Inglaterra, onde incentivado por Linda ele deu início às gravações que resultariam em seu primeiro trabalho solo. Paul utilizou um equipamento rudimentar, um gravador portátil de canais que havia acabado de comprar.
A maior parte do álbum foi gravada desta maneira, mas Paul utilizou também dois estúdios para mixar e fazer alguns overdubs, além de gravar algumas coisas: O Morgan Studios e os estúdios Abbey Road. Em ambos os casos, ele agendou as sessões sob o pseudônimo de Billy Martin (nome de um famoso jogador norte-americano de baseball, na época).
LANÇAMENTO
Após concluída a gravação e produção do álbum, iniciou-se um conflito com a Apple e com os demais Beatles acerca da data de lançamento do trabalho. Isso porque Ringo estava com seu primeiro disco finalizado, e como já mencionado, ainda havia um disco dos Beatles a ser lançado.
O estranhamento com seus amigos e agora ex-colegas de banda havia começado em março do ano anterior por divergências quanto ao novo empresário do grupo, Allen Klein. Paul preferiria ter permanecido com os antigos empresários (o fato deles serem respectivamente pai e irmão de sua esposa decerto influenciava nesta preferência.
Após o anúncio da saída de John e os subsequentes problemas de depressão e alcoolismo que Paul enfrentou, os ânimos se acirraram. Os executivos da Apple e os demais membros da banda queriam que Paul adiasse o lançamento, para não obscurecer o lançamento do disco solo de Ringo e de Let It Be.
Após uma série de telefonemas e discussões, Ringo levou pessoalmente a Paul uma carta assinada por George e John, dizendo que concordava com seu conteúdo, que era o seguinte:
“Querido Paul, nós pensamos bastantes sobre o seu disco e o dos Beatles – e decidimos que é estúpido para a Apple lançar dois grandes álbuns com menos de 7 dias entre um e outro (e também tem o disco do Ringo e o single de Hey Jude) – então enviamos uma carta à EMI dizendo a eles para segurar o lançamento do seu até 4 de Junho (Quando haverá uma grande convenção da Apple-Capitol no Havaí). Nós pensamos que você mudaria de ideia quando percebesse que o álbum dos Beatles seria lançado em 24 de Abril. Nós lamentamos que tenha sido assim – não é nada pessoal. Amor, John, George”.
Paul ficou enfurecido e mandou Ringo embora de sua casa, gritando com ele. Eles levaram anos para cicatrizar o episódio e retomar a amizade depois disso. Então, no dia 09 de Abril, Paul enviou seu disco com um release para a imprensa, no qual comunicava sua saída do quarteto. No dia seguinte, os jornais anunciavam o término da banda. O trabalho foi então lançado em 17 de Abril, duas semanas após o lançamento do disco de Ringo. Let It be acabaria sendo lançado em 08 de Maio.
Os demais Beatles, ressentidos, consideraram uma traição, já que quando Lennon anunciara sua saída, todos haviam concordado em esconder e adiar o comunicado oficial da dissolução da banda, e por considerarem que Paul se valeu do anúncio de sua saída para gerar publicidade espontânea e promover seu trabalho solo.
O material de divulgação que Paul enviou à imprensa no dia 09 era composto por duas partes. A primeira era uma espécie de auto-entrevista, onde em forma de questionário Paul falava sobre o conceito do álbum, comunicava sua saída e aproveitava para espinafrar seus ex-companheiros de banda. A segunda parte eram comentários sobre cada uma das faixas do disco, que serão transcritos no Faixa a Faixa a seguir:
FAIXA A FAIXA
The Lovely Linda – Breve balada acústica que dura pouco mais de 40 segundos, composta em homenagem à sua esposa. As risadas ao final revelam o perfil “caseiro” do disco. “Quando o Studer de 4 canais foi instalado em casa, esta foi a primeira canção que eu gravei, pra testar a máquina. No primeiro canal foi voz e violão, segundo – outro violão – aí gravei por cima mãos batendo num livro, e finalmente baixo. Escrita na Escócia, a faixa é um trailer da canção completa que será gravada no futuro.”
That Would Be Something – O violão conduz esta faixa com influência de blues. “Esta canção foi escrita na Escócia em 1969 e gravada em casa em Londres – mixada mais tarde na EMI (No.2). Eu só tinha um microfone, porque a mesa e os medidores VU ainda não tinha chegado (ainda não chegaram)”.
Canal 1: voz, violão
Canal 2: tom-tom e címbalo
Canal 3: guitarra elétrica
Canal 4: baixo
Valentine Day – Aqui Paul manda vários licks de blues revelando um pouco de seu talento como guitarrista, relativamente pouco explorado nos Beatles dadas as presenças de Harrison e Lennon. “Gravada em casa. Feita à medida que eu avançava – primeiro violão, depois bateria (talvez bateria tenha sido primeiro). De qualquer modo – guitarra elétrica e baixo foram adicionados e a faixa é toda instrumental. Mixada na EMI. Esta e Momma Miss America foram improvisadas, com mais preocupação em testar a máquina do que qualquer outra coisa”.
Every Night – O domínio e segurança de Paul nos violões chamam a atenção nesta balada que tem uma das mais belas melodias do disco. “Esta surgiu a partir das duas primeiras linhas, que eu já tinha há alguns anos. Elas foram adicionadas em 1969 na Grécia (Benitses) no feriado.”
Hot as Sun – Faixa instrumental com arranjo “brega”, onde os timbres parecem tirados diretamente de algum disco de Odair José. Composta quando ainda integrava os Quarrymen, grupo que contava ainda com John Lennon e George Harrison, sendo considerado o embrião do que viria a se tornar os Beatles. “Uma música escrita em 1958 ou 9 ou talvez antes, quando era uma destas músicas que você toca de vez em quando. O meio foi adicionado no Morgan Studio, onde a faixa foi gravada recentemente”.
Glasses – A segunda parte da faixa, Glasses, é basicamente um exercício de experimentação sonora que Paul fez utilizando taças de vinho, que termina com uma breve linha de piano e voz. “Taças de vinho tocadas aleatoriamente e gravadas uma por cima das outras – o final é uma seção de uma canção chamada SUICIDE – ainda não completa”.
Junk – Uma das mais memoráveis melodias, lembra a singeleza acústica de baladas como Michelle, com destaque para a linha de baixo simples e eficiente, que é afinal uma das especialidades de Paul. “Originalmente escrita na Índia, no acampamento do Maharishi, e completada pouco a pouco em Londres. Gravei voz, dois violões e baixo em casa, e depois adicionei coisas no Morgan”.
Man We Was Lonely – Belo diálogo entre os acordes do violão e os arpejos da guitarra neste pop com toques country (ou o contrário, como preferir). “O refrão (“Man We Was Lonely”) foi escrito na cama em casa, um pouco antes de terminarmos de gravar o álbum. O meio (“I used to ride…”) foi feito na hora do almoço numa grande pressa, já que deveríamos gravar a canção naquela tarde. Linda canta harmonia nesta música, que é nosso primeiro dueto juntos. O som de steel-guitar é minha Telecaster tocada com uma baqueta”.
Oo You – Batera e baixo puxam a música pra frente, enquanto mais licks são destilados na guitarra. “As três primeiras faixas foram gravadas em casa como um instrumental que poderia um dia se tornar uma canção. Esta, assim como MAN WE WAS LONELY, foi colocada letra um dia depois do almoço, logo antes de saírmos para o Morgan Studios, onde ela foi finalizada naquela tarde. Vocais, guitarra elétrica, tamborim, cow bell e spray aerosol foram adicionados no Morgan, e mixados lá. Na mixagem, reverb de fita foi usado para mover o feedback da guitarra de um lado pro outro”.
Momma Miss America – Instrumental, é a única música com um clima mais dançante, com uma linha de baixo consistente e pujante evocando um clima meio “disco”, embora o piano e a guitarra arpejada tragam um ar sombrio na primeira parte da faixa. “Uma instrumental gravada totalmente em casa. Feita à medida que eu avançava – primeiro a sequência de acordes, depois a melodia por cima. Piano, bateria, violão, guitarra. Originalmente eram duas peças, mas elas se esbarraram uma na outra por acidente e se tornaram uma”.
Teddy Boy – “Outra canção iniciada na Índia, e completada na Escócia e em Londres, gradualmente. Esta foi gravada para o filme Get Back*, mas depois não foi usada. Regravada parcialmente em casa (guitarra, vozes e baixo)… e finalizada no Morgan. Linda e eu cantamos backing vocais no refrão, e oos ocasionais”.
* (que acabou se chamando Let It Be)
Singalong Junk – A linda melodia é executada pelo piano nesta faixa que é uma versão instrumental – e levemente diferente – de Junk. “Esta foi take 1, para a versão vocal, que era o take 2, e uma versão mais curta. Guitarra, piano e baixo foram colocados em casa, e o resto adicionado no Morgan Studios. As cordas são Mellotron, e foram feitas ao mesmo tempo que a guitarra, o baixo e o prato chiado.”
Maybe I’m Amazed – O grande hit deste disco, se manteve presente no setlist de todas as turnês que Paul realizou desde então. É a faixa que mais tem uma “sonoridade Beatles”, e poderia facilmente ter figurado num dos discos dos Fab Four. O solo de guitarra, construído em cima da melodia, é nada menos que majestoso. “Escrita em Londres, no piano, com o segundo verso adicionado um pouco depois, como se você se importasse”.
Gravado no estúdio No. 2 da EMI
1 piano.
2 vocal.
3 bateria.
4 baixo.
5 e backing vocal.
6 e backing vocal.
7 guitarra solo.
8 guitarras base.
“Linda e eu somos o grupo de backing vocal.
Mixada na EMI. Um fillme foi feito, usando slides de Linda e editados com esta faixa”.
Kreen-Akrore – Uma exibição de Paul de seu talento na bateria, com um breve mas belo fraseado de guitarra que fecha o disco. Curiosidade: O título desta faixa é um dos nomes de uma tribo indígena brasileira, também conhecida sobre o nome de Panarás. “Havia um filme na TV sobre os índios Kreen-Akrore vivendo na selva brasileira, sobre suas vidas, e sobre como o homem branco está tentando mudar o estilo de vida deles, então no dia seguinte, depois do almoço, eu fiz umas batidas. A ideia por trás era atingir o sentimento de sua caçada.Então depois piano, guitarra e órgão foram adicionados.
O segundo canal tinha umas poucas faixas de vozes (minhas e de Linda) e o final tinha respiração gravada por cima, entrando num órgão, e duas guitarras solos em harmonia. Feito no Morgan. Engenheiro, Robin Black. O final da primeira seção tinha Linda e eu fazendo barulhos animais (acelerados) e um som de flecha (feito ao vivo com arco e flecha – o arco quebrou), então animais pisando sobre um estojo de guitarra. Há duas faixas de bateria. Nós fizemos uma fogueira no estúdio mas não a usamos (mas usamos o som dos galhos quebrando).”
FICHA TÉCNICA
Gravação: Dezembro de 1969 a Fevereiro de 1970
Lançamento: 17 de Abril (Inglaterra), 20 de Abril (EUA)
Produção: Paul McCartney
Capa: Fotos de Linda McCartney e Arte de Gordon House e Roger Huggett
Créditos:
Paul McCartney: Voz principal, backing vocais, Violões, Guitarras, Baixo, Bateria, Piano, Teclados, Mellotron, Órgão, Xilofone, Maracas, Bongôs, Tamborim, Taças de Vinho, Aerosol e Arco e Flecha*
Linda McCartney: Backing vocais
*Estes objetos foram utilizados para produzir sons incidentais, mas foram citados por Paul, em seu típico humor britânico.