Um dos maiores festivais de blues da América Latina chega à sua nona edição. Pra quem acompanhou o festival desde sua primeira edição, as mudanças e melhorias são de tirar o fôlego.
Pra quem ainda não teve oportunidade de conferir este festival ao vivo e em cores, cabe uma breve explicação sobre sua dinâmica: Há diversos palcos, de diferentes tamanhos, espalhados pela área do festival, o que inclui o intimista palco do Mississippi Delta Blues Bar.
Os shows ocorrem de forma simultânea, de formas que é impossível assistir a todas as mais de 80 apresentações que ocorreram nas três noites. Embora este seja um fato lamentado por muitos, que gostariam de poder absorver tudo, é benéfico ao festival.
Assim, cada um contempla as atrações (que não são apenas musicais) da maneira que melhor lhes convir. Muitos, principalmente as famílias e grupos grandes de amigos, optam por escolher um show a cada horário e assistir a íntegra dele.
Outros, como parece ser o caso de alguns casais e pequenos grupos, preferem ficar perambulando, detendo-se um pouco mais onde a música mais lhes tocar. Independente da maneira escolhida, é certeza que o festival oferece atrativos diversos para um público que se torna cada vez mais heterogêneo.
Se em seus primórdios o público era composto majoritariamente por homens entre 30 e 50 anos, o perfil foi se abrindo a cada ano. Casais, mulheres, idosos, crianças, jovens e adolescentes podem ser vistos aos montes, e esta diversificação sem dúvida é mais que benéfica.
É uma prova – se é que alguém ainda precisa de alguma – de que a população da cidade comprou a ideia do festival e o acolheu em sua memória afetiva, incorporando-o ao calendário cultural da cidade. Dada a gigantesca estrutura atual, beneficia a economia da cidade, notadamente o setor de serviços.
Destaques da Programação
BOTTLE TREE STAGE
Este foi o nome dado ao palco principal este ano, dada a temática da nona edição (batizada Bottle Trees Edition). Todas as noites, a programação iniciava com uma versão do hino nacional, interpretadas por Tita Sachet (cantora) na primeira noite, Decio Caetano (guitarrista) na segunda e Gonzalo Araya na última.
Na quinta-feira, o primeiro show foi do lendário baixista e cantor Bob Stroger, que já tocou com lendas do calibre de B.B. King. Stroger foi acompanhado pela Headcutters, banda de blues tradicional de Itajaí – SC. Os Headcutters tem se destacado inclusive nos EUA pela seriedade de seu trabalho, e são uma das bandas presentes desde a primeira edição. O palco também recebeu os shows de Fernando Noronha & Black Soul em conjunto com Michael Hardie (cantor e compositor do Texas – EUA) e Baia Toca Raul, com a participação de Rick Ferreira. Rick é conhecido como o Fiel Escudeiro de Raul, tenho tocado em todos os seus discos a partir de Gita, além de ter acompanhado outros grandes artistas como Belchior.


MAGNOLIA STAGE
Testada e mais que aprovada a excelente ideia de dedicar um palco às frontwomen, as mulheres que comandam o show. Em diversos momentos este palco “concorreu” com o palco principal em termos de quantidade de público. A resposta dos espectadores às apresentações era muito boa, uma vibe realmente legal. Um dos destaques foi o show A’s 3, com as cantoras cariocas Indiana Nomma, Barbara Mendes e Alma Thomas.

Outro grande destaque foi o da cantora estadunidense Annika Chambers, que se apresentou com a consagrada Igor Prado Blues Band. Igor, um dos expoentes do blues nacional, vem há alguns anos explorando – no melhor sentido – este filão do qual é um dos pioneiros. Ele produziu uma série de discos e turnês com participações de músicos internacionais, não apenas das várias vertentes do blues, mas também do soul.
Annika é uma das mais fantásticas vozes com as quais Igor realizou parcerias musicais, tendo impressionado pela energia e interação com o público. Em dado momento do show, a banda silenciou para um solo dela sem microfone. A reação inicial de surpresa e admiração deixou a galera inquieta num primeiro momento, fazendo barulho com palmas e assobios. Mas tão logo a intenção foi captada, as pessoas que assistiam também silenciaram, e todos puderam testemunhar o poder e alcance vocal orgânico de Annika.
Destaque para o alto entrosamento musical, não apenas entre os próprios músicos da banda, mas também entre estes e a cantora. Um time composto apenas de feras, como Rodrigo Mantovani, um dos mais produtivos baixistas brasileiros, que domina as diferentes linguagens do blues e da música norte-americana em geral. A bateria é comandada por Yuri Prado, irmão de Igor, em mais um bem sucedido exemplo de parceria musical entre irmãos.

Por este palco passaram também Bruna Balbinot & Big Stuff, do Rio Grande do Sul, Luiza Casé (cantando Amy Winehouse), Bex Marshall (blueswoman inglesa), Ana Gazzola (cantora brasileira radicada nos EUA), Etiene Nadine (cantora gaúcha), Fran Duarte & As Meninas Cantoras de Nova Petrópolis (gaúchas), Orianna Anderson (cantora argentina).
FRONT PORCH STAGE
Um dos palcos preferidos do público já há algumas edições, o Front Porch é um palco intimista, montado na varanda de uma pequena casinha, instalada próximas aos trilhos da antiga linha ferroviária da cidade. Sentado ou de pé, o público tem um contato muito próximo com os músicos, que sentem a energia e a devolvem em ondas sonoras.
Esta casinha é tão característica do festival, que neste ano foram feitos kits com a miniatura da casinha, pro público destacar e montar, uma ideia muito bacana e que foi muito bem recebida.
Este palco recebeu o TNG Duo, um set de jazz cigano feito pelo J.P. Soars & The Red Hots (que encerraram o festival no palco principal), Bex Marshall (blueswoman inglesa), Alamo Leal & Xime Monzon, Tail Dragger e Bob Stroger acompanhado pelos Headcutters. Stroger aliás é praticamente residente na casinha, tendo uma forte relação emocional com este palco.

SELO MDBR STAGE
Toyo Bagoso, idealizador e organizador do festival, é também proprietário do Mississippi Delta Bar e do Mississippi Delta Blues Records (MDBR), um selo criado para lançar talentos artistas do gênero. Uma das inovações desta edição foi dedicar um pequeno palco exclusivamente aos artistas que fazem parte do casting do selo, que atualmente é composto por Cris Crochemore & Blues Groovers, Ale Ravanello Blues Combo e Lara & Jackpot Band.

MISSISSIPPI STAGE / JACK DANIEL’S
O palco do Mississippi Delta Bar é tradicionalmente um dos destaques do festival, com seu palco quente e intimista que pega fogo nas madrugadas de jams, improvisadas com músicos brasileiros e estrangeiros, numa grande confraternização. Em 2016 passaram por ele grandes nomes de guitarra blues brasileira, como Ivan Mariz, Decio Caetano, Gustavo Andrade, Otavio Rocha, Alamo Leal, Cristiano Ferreira, Ricardo Maca. O palco recebeu ainda a Sérgio Rocha Blues Band, num tributo a Celso Blues Boy.
FOLK STAGE
O grande destaque foi o já consagrado Fernando Noronha, acompanhado pela sua Black Soul e com a participação de Michael Hardie (cantor norte-americano), mas o Folk Stage também recebeu a Monty Python Band (um tributo a Allman Brothers), Só Gangsters (encabeçada por Ivan Mariz), Cristiano Ferreira & Alex Rossi, Duda Velasquez, Os Blugs e Flávio Ozelame Trio.
ZERO54 STAGE
Por aqui passaram The Cotton Pickers, que conta com o competente guitarrista Tomás Seidl, The Juke Joint Band, Lennon Z & The Sickboys, Gordini Blues Band, It’s So Blues, Rhaysa & The Standards, Mamma Doo, Etiene Nadine & The Blues Dream Team e Não Alimente os Animais.
NESM conversou com alguns dos personagens do festival, que participam desde a primeira edição. A seguir você confere pequenas entrevistas com Ricardo Biga, que entre outras coisas é gaitista, professor de música e uma das cabeças do Aria Trio, Alamo Leal, guitarrista carioca que morou muitos anos na Europa e lançou um excelente disco em 2016, e Sergio Selbach, baixista do Ale Ravanello Blues Combo, que falou um pouco sobre um músico que chamou sua atenção durante o festival.
Entrevista com Ricardo Biga
Ricardo como começou sua relação com o festival? Como foram os primeiros anos?
Minha relação como MDBF se iniciou já na primeira edição, em 2008, quando fui convidado a ser o curador dos workshops que viriam a acontecer nas edições do festival. Os primeiros anos, cercados de incertezas, dúvidas, pesquisas, viagens a outros festivais com a finalidade de entender o movimento dos acontecimentos, e a grande vontade do fazer tudo dar certo nos permitiram uma conexão muito grande com artistas de várias partes do Brasil e do mundo, que até hoje seguem conectados conosco. Erramos, acertamos, aprendemos, ensinamos e as edições foram acontecendo e chegamos a nona edição com um nível muito alto de organização em todas as áreas e entrega de conhecimento através de nossas oficinas.

Ao longo dos anos na organização, você precisou assumir outras funções?
Obviamente as funções a nós entregues não se limitam unicamente às áreas específicas de nossa atuação. No meu caso, acabo por me envolver com várias outras atividades, desde transporte de músicos, auxílio em questões de logística, até gerenciamento de palco. O MDBF acabou, com o passar das edições, tornando-se uma grande família onde claramente todos os envolvidos tentam dar o máximo de si para que tudo saia da melhor forma. Obviamente a pressão, os imprevistos, o mau tempo (que só deu trégua nesta última edição) e vários outros vetores negativos, vão sendo entendidos e a cada edição resolvidos com mais facilidade.
O que você destaca de suas experiências no festival?
A interação com músicos de tantos lugares diferentes nos proporciona uma experiência única e valiosa. Como músico, tive a oportunidade de tocar e conhecer grandes profissionais que sempre deixam um legado ao portfólio do festival mas também ao nosso pessoal. Tem-se a oportunidade de contato e vivência com músicos dos mais variados instrumentos, de cordas a percussão, de voz a teclas… E se você está visitando o festival, a possibilidade de ter em média 7 palcos de shows (com atrações nacionais e internacionais), 3 workshops por noite, uma infinidade de lojas, stuffs, praça de alimentação, atividades externas (Blues Tour por exemplo), food trucks, dança, brincadeiras e mais uma infinidade de atrações transforma o MDBF em um dos eventos mais empolgantes da América do Sul e o maior em se tratando de festival de blues. Sinto-me orgulhoso de fazer parte desse time. Estamos sempre buscando a melhora, a excelência, a inovação e a vanguarda. O que nos move? O BLUES!!
Entrevista com Alamo Leal
Alamo, assisti ao seu show no Bottle Tree, sensacional!
O show no Bottle Tree Stage (palco principal) foi abrindo a noite no sábado, no último dia. Com Luciano Leães (teclado), com o pessoal do Rio, Otávio (Rocha, guitarrista do Blues Etílicos), Cesar (Lago, baixista da Beale Steet) e Beto (Werter, baterista da Beale Street e Blues Groovers).

Como foram os shows com a Xime?
Com a Xime Monzon já foi de violão, foi no Front Porch Stage, Com Freddy Muñoz (contrabaixo), foi muito legal mesmo, foi uma mistura de Delta Blues com um pouco de Jimmy Reed, blues de Chicago… Toquei algumas coisas do meu álbum também, na verdade foram dois sets, foi um show que eu curti MUITO mesmo fazer, fora todas as participações que eu fiz durante o festival inteiro.
E em relação a estas participações, o que você destaca?
Eu fiz também um show com a Luiza (Casé, vocalista, cantando Amy Winehouse) e com o Otávio também, lá no bar (Mississippi), que eu também curti muito mesmo. Foi um show de trio, eu toquei violão, o Otávio tocou slide. Estes foram os shows principais, mas de participações, putz, tocar com o Bob Stroger e com o Tail Dragger no Front Porch… e com Joe Marhofer na gaita e com o Adrian Flores (baterista) lá, fazer quase que um set inteiro com eles lá naquele Front Porch Stage, foi uma coisa fora do comum mesmo, foi uma experiência incrível de estar com eles fazendo isso. Também no bar, fiz participações nas jams, na jam final… e no fim foi maravilhoso tudo mesmo.
Falando novamente dos shows no Front Porch, você gostou de tocar com a Xime Monzon (gaitista argentina) e o Freddy Muñoz (baixista chileno)?
Meu querido, tenho que dizer uma coisa pra você, eu fiquei impressionado com estes shows que a gente fez. Os dois sets que eu fiz no Front Porch, tenho que dizer que foi um dos melhores sets acústicos que já fiz na minha carreira, mesmo, estou dizendo com toda sinceridade. Freddy e Xime juntos, eles me acompanharam de uma maneira muito precisa mesmo, a vibe, uma camaradagem de palco, uma coordenação muito legal entre nós, uma vibe maravilhosa mesmo. E os dois tocam muito também, né? Foi um prazerzaço mesmo de estar com eles nisso, destaco estes como os melhores shows que fiz no festival. Gostei também do que fiz com minha banda, com o Luciano (Leães), mas este você assistiu. E claro, com o Bob Stroger e com o Tail Dragger, estar num palco com estes dois é estar no palco com história, né? Quer dizer, eu fui muito privilegiado e foi uma honra enorme mesmo poder estar fazendo isso com eles. Enfim, foi um festival maravilhoso, uma pena que eu não tenha tido mais tempo contigo, pra gente dar umas risadas e curtir um pouco, mas vai acontecer, com certeza!

Interatividade Musical
Sem dúvida alguma, uma das coisas mais interessantes que ocorre no festival é a interação entre músicos de diferentes lugares do Brasil e do mundo. O blues é uma linguagem musical específica, mas tem também seus vários sotaques, e esta interação é extremamente enriquecedora.
Sergio Selbach é um dos músicos que praticamente compõe a prata da casa, presente no festival desde a primeira edição, acompanhando artistas e tocando com diversas bandas. Seu principal projeto é o Ale Ravanello Blues Combo, ao lado do gaitista, vocalista e frontman Ale, que batiza o grupo, do baterista Clark Garbale e do guitarrista Nicolas Spolidoro.

Sergio, que começou na música tocando rock, se tornou um requisitado baixista, dominando várias vertentes estilísticas, tendo se especializado no blues. No churrasco de confraternização dos músicos, que ocorre tradicionalmente no domingo seguinte ao festival, um comentário de Sergio sobre outro baixista me chamou a atenção.
Este baixista é o introvertido Cleveland, da banda do guitarrista JP Sours, que fechou a última noite do festival no palco principal. Pedi ao Sergio que elaborasse mais seu comentário sobre o músico, pois acho importante dar voz aos músicos sobre seu ofício. O bruxo portoalegrense do contrabaixo declarou o seguinte:
Frederic Cleveland – contrabaixista de som efusivo com muitas variações de estilo onde passa pelo blues, soul, rock e funk. Domina muito bem as técnicas de mão direita, ora tocando com muita pressão e profundidade, ora com muito groove, que é um dos seus destaques. A técnica de slap soa muito bem, demonstrando uma grande influência do contrabaixista Marcus Miller.
